sexta-feira, 29 de março de 2019


Novo livro: "Janelas da psicanálise - Transmissão, clinica, paternidade, mitos, arte"

                            Fernando Rocha  


RESENHA DO LIVRO:

Psicanálise, multiplicidade e interdisciplinaridade
Betty Bernado  Fuks[1]
Resenha de Fernando José Barbosa Rocha, Janelas da Psicanálise: transmissão, clínica, paternidade, mitos, arte. São Paulo: Editora Blucher. 2019, 334p. “Série Psicanálise Contemporânea”. 

Em tempos de penúria, quando alguns  continuam insistindo em vulgarizar a  Psicanálise,  reduzindo-a a um saber dogmático a serviço de suas próprias   instituições;   e  outros  fazem avançar, com estardalhaço na mídia, a ideia de que  o lugar do inconsciente na contemporaneidade não é mais aquele construído por Freud,  um livro que contradiz tais afirmativas, bem definido, incisivo,  e  escrito em linguagem clara e precisa,  merece saudações.   Brindemos, então, a edição  do segundo livro do psicanalista Fernando Rocha, recém lançado pela editora Blucher: Janelas da Psicanálise: transmissão clínica, paternidade, mitos, arte.
O excelente Prefácio assinado por Joel Birman -  “Cartografias da psicanálise” -  permite uma melhor apreensão dos quinze ensaios e uma entrevista que   compõem ordenadamente  os quatro capítulos dessa obra. Interligados,  eles são apresentados sob a rubrica  “janelas”, categoria  que faz jus,  como bem assinala o prefaciador,  à posição ética de Rocha  frente aos registros pluridimensional e interdisciplinar da psicanálise.   Nota-se,  de saída,  que o grande desafio do autor foi o de tecer em conjunto os diversos ensaios e os diversos temas que se propôs perscrutar, obedecendo ao princípio de que no psiquismo habitam uma pluralidade de traços, que mantém concatenação entre si, e energia circulante.  Nesse diapasão, o livro possui três qualidades fundamentais para enfrentar a crise contemporânea da psicanálise citadas acima: rigor, multiplicidade e interdisciplinaridade.
Na primeira “janela” – Psicanálise e Transmissão -   Fernando Rocha aborda a questão da formação psicanalítica de maneira particularmente original: estabelece um diálogo interdisciplinar entre a noção freudiana de formação e as ideias dos filósofos Theodor Adorno e Hanna Arendt,  de que o processo de formação é algo da ordem da emancipação do sujeito em relação aquilo que recebe do Outro.  Através desse diálogo o autor procura fazer avançar a noção de transmissão da psicanálise evitando o  confrontar disciplinas já constituídas das quais, na realidade, nenhuma consente em ceder à outra.  Essa posição dialógica, segundo Barthes[2]  permite ao pesquisador criar um novo objeto,  o Texto. No caso, o texto de Rocha possui uma iluminação filosófica capaz de subverter os dogmas da discursividade obsessiva que impera nas instituições psicanalíticas.
Em Psicanálise e clínica, a  segunda “janela”, o leitor terá acesso à uma modalidade singular de exercício da terceira das profissões impossíveis,  a psicanálise. Indubitavelmente trata-se de um mérito a tentativa  do autor de expor alguns  casos e vinhetas clínicas em intima consonância com uma variedade de temas -  perda, luto, resiliência, trauma, corpo, narcisismo  -,   mesmo tendo afirmado que o relato clinico é uma tarefa “impossível”. Um paradoxo perfeitamente admissível, quando se trata de refletir e pensar a transmissão da psicanálise. O tema das “entrevistas preliminares”, já desenvolvido com precisão no primeiro livro de Rocha, Entrevistas Preliminares em Psicanálise (Casa do Psicólogo, 2011),  reaparece na apresentação de uma  vinheta clínica.  Através dela  o autor apresenta o que considera ser a função principal de tais entrevistas: estabelecer um  corte para transformar o sintoma em sintoma analítico no trabalho de retificação subjetiva do  candidato à analise. Esse seria o único destino possível   para que o analisando chegue  a se reconhecer como partícipe da situação geradora de sofrimento.   
Na terceira “janela” – Psicanálise: paternidade e mitos –,  Rocha mergulha nos estudos que abrangem a conexão Psicanálise e Cultura, sem perder de vista a importância  vital de se manter muito próximo da clínica e da metapsicologia. Razão pela qual a questão Pai em psicanálise aparece em sua obra articulada em base a materiais míticos e clínicos.  Imediatamente o leitor identifica  o alinhamento de Rocha à  tese freudiana, exposta no Projeto para uma psicologia científica,  de que o destino do indivíduo não pode ser estudado fora da cultura em que está inserido.  Nesse sentido, o livro oferece algumas reflexões importantes sobre o sujeito contemporâneo que mostram o quanto o autor se mantém fiel  às categorias psicanalíticas. É possível extrair das elaborações do conceito de compulsão à repetição,  exposto minunciosamente  nesse segmento, elementos  para uma crítica psicanalítica à cultura contemporânea. Nas entrelinhas do texto de Rocha não faltam recomendações ao leitor de procurar seguir o  exemplo de Freud, um analista que jamais ignorou a política de seu tempo.  
A importância da experiência interdisciplinar na obra de Rocha aparece   com vigor na última “janela” do livro – Psicanálise e arte -.    Destaco aqui o verso de Mário Quintana,  citado pelo autor – “Quem escreve poesia resgata um afogado” –,  pois me remete ao próprio afogar da psicanálise, quando um analista se limita a aplicar conceitos psicanalíticos à literatura ou à arte propriamente dita.  Na contra mão dessa vertente, Rocha segue o conselho de  Freud de “depor as armas”  diante do artista e do escritor e  relança algumas questões a partir do que lhe é possível encontrar na arte, concebida como forma privilegiada de acesso ao inconsciente.  Assim,  nosso autor se inclina sobre a essência musical para traduzi-la em forma visível; toma a música como campo de investigação, enquanto textualidade,  a partir do qual é possível dizer algo sobre o real que não alcança dizer com os elementos da teoria.  Em termos de acréscimo à teoria psicanalítica trata-se de um trabalho próximo ao real da clínica, momento em que o analista tem condições de fazer progredir  a teoria.  Nesse ponto, a  expressão “janela para o real” criada por Lacan para designar a fantasia  que recobre o real inassimilável – aquilo que se traduz clinicamente através da angústia e do trauma -, seria ideal para distinguir a aplicação fantasmagórica da teoria sobre a arte,  da modalidade de leitura à letra que visa possibilitar a emergência de um não-dito.   Não é em vão, que no capítulo seguinte, Rocha se debruce sobre a questão do ciúme paranoico. Maneira pela qual reivindica o interesse de seus leitores psicanalista e os de outras áreas, pelo estabelecimento de relações inesperadas entre psicanálise, literatura e arte.
Para finalizar retorno à problemática da transmissão.  Dessa vez reiterando  o fato de que a psicanálise detém a gloriosa apreensão do tempo,   de modo a fazer conviver passado e presente no mesmo lugar;  o que  assegura que o humano é impregnado pela “dívida simbólica”  que provém das gerações precedentes.  A defesa do autor pela noção freudiana  de temporalidade psíquica na apresentação de seus casos clínicos  e dos  conceitos lacanianos de desejo do analista e de sujeito suposto saber,  resume de forma definitiva sua adesão à máxima de Goethe registrado por Freud em Totem e Tabu -   “Aquilo que herdastes de teus ancestrais, conquista para faze-lo teu” -.   Assim, ainda que de modo obliquo, o livro se torna o retrato do desejo de Rocha de conjugar a complexidade psicanalítica à reescritura do que vem a ser as noções psicanalíticas de transmissão, clínica e  paternidade,  e ao seu percurso reflexivo dos estudos interdisciplinares entre a psicanálise e a arte.




[1] Psicanalista, doutora pela Escola de Comunicação e Cultura da UFRJ, Pesquisadora do CNPq e professora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (RJ)
[2] Barthes, R. (1988) Jovens Pesquisadores. Em  O rumor da língua. São Paulo: Editora Brasilense.

sábado, 21 de maio de 2016

Esculpindo o Inaudito

1. Esculpindo o inaudito

                            Fernando Rocha  




“(...) A possibilidade de traduzir, com a forma visível, aquela essência íntima, anterior a qualquer forma, que é a música (...). Nessa operação, o poeta é um tradutor que consegue que o ilimitado da mensagem musical encarne-se nos limites da imagem apolínea” (Alain Didier Weill, 1997).


            Definir uma possível fronteira entre arte e psicanálise pode significar um sobrevoo no tempo: ambas contém a noção de Techné[1], termo que atravessou a antiguidade greco-latina e manteve-se fiel à noção de “fazer nascer, fazer brotar”. Talvez tenha sido essa a vinculação entre arte e psicanálise, percebida por Freud quando privilegiou a analogia entre psicanálise e arte escultórica.
            A função do analista é a de conduzir o analisante, por meio da associação livre e da ressignificação, ao caminho da criatividade, na trilha do “criar para não adoecer”.
À diferença de outras artes, como a pintura, a escultura pode surgir do que retira da matéria.  Diante da tela em branco, o pintor, prenhe de imagens, procura preencher o vazio. Já para o escultor, igualmente prenhe de imagens, mas forçado a reconhecer os limites impostos pela matéria, não há vazio a preencher. A matéria é plena; cabe ao escultor extrair a forma latente que nela habita. Forma silente e adormecida, cujo despertar para o mundo da palavra depende de um Outro que a torne presença[2].  
Há, na realidade, a maior antítese possível entre técnica sugestiva e analítica – a mesma antítese que, com relação às belas artes, o grande Leonardo da Vinci resumiu nas fórmulas: per via di porre e per via di levare. A pintura, afirma Leonardo, opera per via di porre, pois ela aplica uma substància – partículas de cor – onde nada existia antes, na tela incolor; a escultura, contudo, processa-se per via de levare, visto que retira do bloco de pedra tudo o que oculta a superfície da estátua nela contida. (Freud, 1904/1905, pp 270, 271.)


Assim, para Freud, a técnica de sugestão processa-se per via de porre; superpõe algo, uma sugestão, na expectativa de que será suficiente “para impedir que a ideia patogênica venha a expressar-se”. Já a “terapia analítica” não busca introduzir nada, mas sim retirar algo, fazendo aflorar alguma coisa, preocupando-se com a gênese e o contexto psíquico dos sintomas.
Esta proposição de Freud aponta para a ideia de que o trabalho psicanalítico , per via de levare –  com o levantamento do recalcado –  propiciaria o surgimento de um existir mais pleno, como no trabalho do escultor ao retirar o que encobre a estátua aprisionada.
Brias Silveira (2010), nos lembra, de modo pertinente, que, no início da teorização psicanalítica, partia-se da ideia de um psiquismo já de posse de uma atividade representativa. O novo aporte meta-psicológico da segunda tópica de Freud, em 1923, faz a teoria da clínica voltar-se não apenas para a simples tomada de consciência, mas para  as questões relativas às vicissitudes do trabalho de simbolização, sobretudo a partir da questão explicitada na célebre frase Wo es var soll ich werden: “Onde estava o id, ali estará o ego” (Freud, 1933/1976, p. 102). Assim, ao longo do trabalho clínico, principalmente a partir do exame das organizações não neuróticas, em que há predomínio do sofrimento narcísico, evidenciou-se a insuficiência desta concepção inicial de funcionamento psíquico para abarcar todas as suas possibilidades.
O fato de o homem nascer prematuro faz dele portador de uma característica que irá sobressair, quando comparada com outros animais, cujo grau de maturação, desde o nascimento, lhes permite maior autonomia. Tal prematuridade é, pois, própria do humano, cujo estado de dependência exige, por um longo tempo, a presença de outro que possa lhe fornecer a garantia tanto de vida biológica como de vida psíquica. Este corpo prematuro carrega as marcas dos seus começos, as marcas do movimento que surge desde o nascimento, passando pelo controle da motricidade até a aquisição da linguagem. É esse corpo que, mesmo como organismo natural, irá inevitável e lentamente imergir na cultura, para realizar um percurso que será o palmilhar de sua história – de suas vivências psíquicas.
Assim, a história singular de cada homem dependerá da existência de um outro humano, um semelhante, ou seja, um humano já submetido à Lei da cultura, às leis da interdição do incesto. Referir-se, então, a um humano é admiti-lo como efeito da relação com um semelhante, que assegure tanto os cuidados maternos como a interdição do incesto. (ROCHA, 2015)
Embora o mundo da cultura preexista ao humano, este é a expressão da tensão entre o natural e o cultural. Se o nascer é margeado por uma “naturalidade”, não tarda e logo a cultura arrebata o homem, recobrindo-o, em parte, com o seu véu, para que finalmente possa – por meio da relação com o semelhante – reconhecer as leis da cultura, a ela tornando-se submisso e, por fim, “humanizando-se”.

Ainda em “Projeto para uma psicologia científica”, Freud (1895a) nos permite depreender que o alicerce de uma organização psíquica dependerá de como ocorreu a experiência de satisfação do infans (aquele que ainda não fala) com o semelhante. Com a experiência de satisfação, dizemos ter havido um “a mais” de prazer – ativação de zonas erógenas – que, ao tornar o infans um ser desejante, retira-o da condição de ser marcado somente pela necessidade. Ser cujo desejo, ao expressar a existência de uma falta estruturante, possibilita-lhe a formação de um corpo simbólico, característico da estrutura neurótica, conferindo-lhe o estatuto de sujeito.
Essa “vivência de satisfação”, teoricamente, origina-se no momento em que o infans, buscando saciar uma necessidade – a fome, por exemplo -, é surpreendido pela ativação de uma de suas zonas erógenas. Esta, proporcionando-lhe um a mais de prazer, registra nele a marca de sensação de prazer. A partir de então, origina-se um movimento desejante, caracterizado pela busca vã de reencontrar aquela mesma marca de sensação deixada pela primeira vivência de satisfação. Esse movimento desejante – tentativa de encontrar uma satisfação idêntica – provoca marcas inaugurais no aparelho psíquico, que constituirão o denominado das Ding – a Coisa. Das Ding é formado pelo traço do objeto de percepção e pela marca de sensação deste objeto que, com função de coisa dentro do infans, passará a exercer uma função de juízo para todas as subsequentes experiências de vida daquele sujeito (Idem. 2015).
Uma vez emitido o grito inaugural, o homem-infante necessita de um Outro que lhe possibilite transformar esse grito, silente de significação, em fala. Outro, responsável pela vida biológica, que lhe confira vida psíquica.
Sem a pretensão de ser escultor ou o Outro que assegura a vida do infante, o analista é, no desempenho de sua função, um Outro que, ao provocar a formação de cadeias imagéticas, faz brotar no paciente a sua forma: vivências psíquicas[3]. Da mesma maneira, a obra de arte necessita de um Outro que a faça viver: que a toque, que a veja, que a sinta, que a escute.
Através dessas analogias, podemos depreender a forma pela qual Freud concebe o ato de “fazer nascer” como ultrapassando a noção de obra circunscrita a um universo puramente tangível. Enquanto coisa criada, a obra vive através de um Outro que, ao reconhecer-lhe existência, revela-a transitória e perene. O mesmo ocorre com o homem que, em sua vida transitória, só existe e se pereniza quando reconhecido por um Outro. A partir dessas semelhanças, não haveria distinção entre uma obra que se materializasse por meio de objetos corporais, como a escultura e a pintura, ou incorporais, como a música e o canto.
Alain Didier-Weill (1997), em outra abordagem do mesmo tema, diz que o humano é o resultado de substâncias heterogêneas, cuja expressão encontra-se na “materialidade do corpo” (corporal) e no “verbo enxertado nesse corpo” (incorporal). O entrelaçar da materialidade do corpo, sua imagem e o verbo nele enxertado foram abordados desde o início da obra de Freud, na qual o homem é apresentado como o efeito da tensão entre o corporal e o incorporal – ou seja, entre corpo e palavra – e ainda entre percepção e sensação.
De maneira similar, o escultor, para extrair da matéria uma forma, vale-se de uma linguagem que, ao introduzir a obra no incorporal – a nomeação –, torna-a também o efeito de uma tensão entre corporal e incorporal. Diante de seu majestoso Moisés, Michelangelo diz: “Fala”. Arte e psicanálise encontram em Freud o grande enunciador da estreita relação entre o artista e o psicanalista.
A busca pela reafirmação dos vínculos entre arte e psicanálise tem conduzido outros pensadores a novas articulações. É o caso de Weill, para quem o poeta, visto como um tradutor, é equiparado ao psicanalista. Para ele “o poeta é um tradutor, que propicia ao ilimitado da mensagem musical a sua inserção nos limites da imagem apolínea[4]. O mesmo pode ser dito do psicanalista.
O termo apolíneo refere-se ao deus Apolo – o deus do Metron, medida – que na tragédia é visto por Nietzsche como representando o ator, aquele que constrói o signo. Cabe lembrar que a tragédia grega, cuja origem pode ser encontrada em Ésquilo, possui inicialmente apenas um ator, termo cujo equivalente em grego é o vocábulo hipócritas [5].  
 O ator - hipócritas – valia-se de várias máscaras para representar diferentes personagens, através de cujos discursos buscava dar sentido aos acontecimentos. Desta maneira, o ator ocupa, na tragédia, o lugar do discurso.
Em oposição a Apolo, encontra-se Dionísio, deus da desmesura (Hybris) que, na tragédia, é representado pelo coro – cujas aparições destituem o signo de sua função comunicante e se dão através de sons, gestos e danças.
Ao associar Apolo ao lugar de onde surge a palavra, compreendemos o destaque que Weill confere ao significante: “é através do significante que se podem amarrar o real da música e a imagem especular” (1977:27). Com função assemelhada à de Apolo, o analista tem uma palavra que, embora capaz de construir o signo, é também capaz de provocar a desconstrução do mesmo. Assim, a função do analista abrigaria também Dionísio.
Da mesma forma que o analista reconhece as palavras pelo que elas significam socialmente, ele também as reconhece quando perdem a sua função social e passam a dizer vivências inconscientes, deixando falar Dionísio. A palavra, então, como significante, também é utilizada pelo analista. Esse significante – que, no dizer de Freud, corresponde à imagem acústica – é capaz de circular pela representação coisa e pela representação palavra.
 Na tese sustentada por Freud, a representação coisa está ligada à representação palavra com a sua terminação sensorial, mediante as imagens acústicas. Por meio dessa tese, Freud enuncia que “o ponto central de toda função da linguagem” reside na “atividade associativa do elemento acústico” (Contribution à la conception des Aphasies, 1891).
A força do poder associativo do elemento acústico pode ser visualizada através de duas situações clínicas. Na primeira, uma mulher telefona para o analista, em busca de ajuda. Por não dispor, naquele momento, de horários compatíveis com as possibilidades da mulher, o analista pede-lhe que aguarde. Ela, no entanto, insiste, se antecipa e lhe faz várias ligações telefônicas. Uma vez viabilizado o inicio do tratamento, a paciente revela que “embora conhecendo o analista somente por telefone, estabeleceu uma forte ligação”. Ao longo do trabalho, ela compreende que o seu aparentemente inexplicável interesse em iniciar o tratamento com aquele analista estava relacionado com o fato de o mesmo possuir um sotaque idêntico ao de seu pai. Na segunda situação, o analista, com o objetivo de incentivar a continuidade associativa do discurso da paciente, emite um som (“hum, hum”). De imediato, a paciente associa esse som a uma cena de infância, na qual ela se encontrava numa rede com o pai e este a embalava ao som de um “hum,hum”,”hum”.
 Nesta mesma direção, Weill (1997:57,58), tomando como ponto de partida o que se passa na música, diz: “...vocês devem ter notado, quando ocorre de a emoção musical nos invadir, que ela suscita dois movimentos, dois estados de alma, dos quais poderíamos provisoriamente dizer que realizam a conjugação de um estado de felicidade e de nostalgia psíquica”. Esta nota de música que em nós desenvolverá o estado de gozo, será segundo o autor, “sempre a mesma, no sentido em que será disparada tanto de uma simples cantiga quanto do piano de Mozart ou do sax de Lester Young”.
 Uma paciente, que atendi fora do Brasil, narra a experiência seguinte: Encontrava-se  num vernissage quando sentindo-se atraída pela voz de um homem que dialogava  com outro em espanhol. Sentindo-se estranhamente fascinada pela sonoridade daquela voz, logo tentou provocar uma situação para entrar em contato com ele e, a partir daí, começaram a se encontrar. Ela ficara por ele apaixonada a ponto de pretender romper o próprio casamento. À medida em que tentava na análise compreender o que lhe estava acontecendo, o fio de suas associações a levaram a pensar que aquele sotaque pelo qual ficara fascinada tinha a ver com a voz de uma antiga babá de língua espanhola,  que ela tivera quando morou, em sua tenra infância, num país de língua espanhola.
Esta experiência vem corroborar a ideia de que a tendência do desejo é a de sempre encontrar algo do traço do objeto perdido.
Em sua função simbólica, o analista é propulsor do processo associativo, no qual a representação coisa, ao emergir na representação palavra através das imagens acústicas, interpela o discurso consciente e evoca novas imagens, que surpreendem o sujeito e provocam a formação de cadeias associativas. Se é possível que esses acontecimentos ocorram fora do setting analítico, é somente nele que ganham especial relevância, já que constituem um dos fatores responsáveis pelo desenrolar do processo analítico.
Ocupante do lugar do apolíneo, o analista também seria um hipócritas, já que, enquanto objeto de transferência, representa os vários personagens que compõem o psiquismo do paciente.
Lugar onde o signo fica ancorado, o lugar do analista é provocador de vivências que permitem a emergência da energia até então desvinculada de imagens, urgindo por uma expressão que ocorrerá quando essa energia for enlaçada por uma representação.
Não é sem propósito que Freud estabelece duas importantes articulações: uma vinculada à arte – no caso específico da arte escultórica – e a outra, quando confere ao método psicanalítico a preeminência da palavra. Embora definidas por diferentes parâmetros, tanto a arte escultórica quando a psicanálise guardam entre si uma semelhança: ambas são efeito do possível. Ao extrair a forma da matéria, o escultor fica preso a seus limites. Da mesma maneira, o analista – embora sendo o propiciador do movimento transferencial – não pode alterar as marcas psíquicas delimitadoras da expressão do paciente. Marcas provenientes das vivências psíquicas ocorridas ao longo da vida que, por não serem ordenadas cronologicamente, podem ser associadas e tornadas presente sem considerações de tempo.
A cena analítica deveria, então, provocar a emergência das vivências de infância e servir de lugar para que estas se revelassem, como que à luz do poetar de Mário Quintana:

                    Quem faz um poema abre uma janela:
                    Respira, tu que estás numa cela abafada,
                    esse ar que entra por ela.
                    Por isso é que os poemas têm ritmo
                    Para que possas, enfim,
                    Profundamente respirar.
                    Quem faz um poema salva um afogado(6).


Ou de José Saramago quando escreve: “Há dentro de nós uma coisa que não tem nome e essa coisa é o que somos”.

Mesmo que possamos distinguir diferenças entre arte e psicanálise, é inegável que Freud recorreu à literatura, à pintura, à música e ao mito, entre outras manifestações artísticas, para estruturar e pensar os conceitos da teoria psicanalítica. No entanto, diferentemente do analista que não assina a sua “obra” (o paciente) e nem se pereniza através dela, o artista, este sim, assina a criação que o pereniza. Freud percebeu a dimensão perene da obra, já que não considerou o artista um mero intérprete “concreto e singular do seu tempo”.
Como nos lembra Weill (1997:33), através da arte o homem poderia vislumbrar o tempo da perenidade:
Como compreender o sentido do ato artístico senão como a tentativa feita pelo homem de lutar contra essa ameaça, substituindo ao homem, ameaçado de anonimato pelo saber absoluto, a parte de incógnito que é seu bem mais íntimo? Onde o homem, observado de todos os lados, fica transparente, eis que o pintor recorda-lhe que ele continua habitado pelo invisível; (...) já “a música vem lembrar-lhe que, ao contrário e contra tudo, o inaudito conserva suas exigências” e onde “o dançarino é aquele que relembra ao homem o fato de que nele permanece um movimento original cujo caráter absolutamente inimitável ele tende a esquecer”.

Se as diferentes expressões artísticas contém uma Techné que pode perpetuá-las, o mesmo não ocorre com a Techné própria ao psicanalista. Metaforicamente, a obra do analista é o paciente e essa obra não deverá ser assinada, uma vez que a psicanálise visa a propiciar o encontro de cada paciente consigo mesmo e não sua identificação com a pessoa do analista.  
Visto desta forma, um dos efeitos do processo analítico é o de propiciar a liberação da energia, até então voltada à manutenção dos sintomas, em proveito de uma vida mais criativa. Como nos lembra Freud, através do filósofo Heine, “Deus criou o mundo para não ficar doente”.
Freud associa o analista ao escultor e nos revela uma das mais importantes características do analista: a de não poder alterar a qualidade da “matéria” com a qual trabalha. Freud assinala ainda, como elemento de relevo, o fato de que tanto o escultor quanto o analista estão limitados pelo tipo de matéria que cada um deles utiliza, sem lhes poder alterar a qualidade – vidro não pode ser transformado em madeira – da mesma forma que o analista estaria marcado por um limite semelhante, que tornaria impossível alterar a história vivencial do sujeito.
No entanto, a riqueza revelada por Freud, a partir das duas situações, é que tanto o escultor quanto o psicanalista podem fazer brotar as incontáveis possibilidades de criar, seja no limite da matéria, seja no limite do sujeito. Se o ato de criação, em ambos os casos, mostra-se não só possível, mas mutante, o tempo que separa dois mil anos da concepção grega de arte e Techné passou também por modificações. Ao psicanalista não é dado assinar aquilo que porventura considere a sua criação.

Este anonimato que, no passado, fez parte também do oficio do artista grego, até Fídeas, hoje demarca uma diferença entre o psicanalista e o artista. Nesse passar de tempo, a figura do artista tornou-se cada vez mais forte, foi adquirindo um caráter de legitimidade e passou a reivindicar uma autoria.
Ao contrário, se é possível atribuir ao analista a execução ou a criação de uma “bela obra”, essa só será assim considerada na medida em que ele não deixar prevalecer as suas marcas de autor, mas tiver sido o catalisador, o facilitador de possíveis rearranjos propiciadores do singular percurso de cada sujeito. Neste sentido, cabe lembrar que há uma distinção entre a identificação à pessoa do analista e a identificação com a função analítica.
Quanto à articulação entre o método psicanalítico e a preeminência da palavra, Freud esclarece que, se o método psicanalítico entra em conflito, a partir de algum momento, com o método hipnótico – que se baseia na submissão idealizada ao médico, consequência de uma não-escuta de si – é justamente por considerar a fundamental importância da escuta e da fala advindas do paciente.
Poder se escutar é, para o paciente, adquirir a possibilidade de ressignificar as próprias vivências. Neste sentido, como vimos, a preocupação de Freud com a camada acústica parece existir desde os primórdios de sua obra. A importância da camada acústica encontra-se presente desde o texto sobre as afasias, não só enquanto propulsora da vinculação entre representação coisa e representação palavra, mas também como aquela que propicia o processo de ressignificação.
Se, por um lado, Freud ressalta a importância da camada acústica no processo de significação e ressignificação, por outro, também chama atenção para o fato de o ser humano-infante falar sem necessariamente compreender o significado das palavras.
Ao realçar a associação livre, Freud desvela o caminho da criatividade, uma vez que, no processo analítico, o signo nele esculpido faz brotar as várias formas possíveis. Formas que, ao revelarem o velado e despertarem o adormecido, possibilitam ao paciente a recriação de sua própria história.


BIBLIOGRAFIA

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 SARAMAGO, J. Ensaio sobre a cegueira. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1995.

WEILL, A. D. – Nota Azul – Freud, Lacan e a Arte. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997.












[1] Sobre Techné, Estrella Bohadanna (1992) em Sobre Deuses e Poetas, escreve que “em Homero, à revelia de qualquer hierarquização, encontramos diferentes técnicas dotadas do mesmo estatuto. Quando emprega o vocábulo techné, ele o faz no sentido de fabricar, construir, produzir, criar”. (...)   “Para o vocábulo techné estamos considerando a etimologia fornecida por M.A.Bailly, o qual lhe atribui origem na raiz indo-euroéia tek, dando-lhe as significações de enfanter, produire, créer, como encontramos em Homero. (Ver M.A. Mailly. Dicctionnaire Greco-Français. Paris:. Livrairie Hachette, 6ème édition, 1940).

[2] Para certas crenças populares, algumas imagens sagradas, pintadas ou esculpidas, não são produzidas por mão humana, mas sim descobertas.

[3] Essas cadeias imagéticas seriam capazes de enlaçarem o quantum de afeto e se tornarem responsáveis pela produção de sentido. Ver Freud: Estudos sobre a histeria e Projeto para uma psicologia científica.

[4] Nos comentários feitos por E. Bohadanna em Freud e a Tragédia: a impulsão da palavra, o termo apolíneo é apresentado como sendo empregado por Nietzsche em oposição ao dionisíaco. No entanto, comenta a autora, embora sendo forças opostas, Apolo e Dionísio longe estão de possuir origens diferentes: ambos nascem do seio da natureza. Assim, Apolo e Dionísio formam uma unidade que presentifica a condição do homem. Embora submetido à castração – dimensão apolínea -.ele manterá sempre uma outra dimensão indomesticável – a dionisíaca. Assim, seria o homem simultaneamente Metron e Hybris.

7. Sergio Rodrigues – Sobre Palavras – O hipócrita nasceu no palco. Veja.Abril/com.br/blog/sobre palavras/ curiosidades etimológicas. Para este autor, A palavra hipócrita veio do grego e designava, a princípio, apenas um ator, um comediante, um histrião, sem as conotações intensamente negativas – de falsidade, dissimulação, fingimento – que hoje estão a ela associadas.

O Houaiss registra a acepção grega de “intérprete de um sonho, de uma visão; adivinho, profeta” como sendo anterior à de ator – o que pode sugerir uma raiz de charlatanismo para o dissimulado de hoje.
No entanto, o etimologista catalão Joan Corominas liga a hipocrisia diretamente ao trabalho de interpretação de uma peça, sem a interferência de profetas ou adivinhos, ao derivar o termo grego de hypokrínomai, “diálogo”.
Seja como for, é certo que, ao desembarcar em português no século XIV, a palavra hipócrita já trazia consigo, pronta, a acepção que hoje vemos atribuída com frequência a políticos e outros fingidores. Em tempo: o grego Hipócrates, conhecido como “pai da medicina”, não tem nada a ver com isso.


sábado, 11 de outubro de 2014

Ensaio psicanalítico sobre o ciúme: o ciúme e a música popular

Fernando Rocha[1]

Eu vi com os meus olhos e observei bem um pequeno tomado de ciúmes: ainda não falava e não podia, sem empalidecer, lançar o seu olhar para o espetáculo amargo do seu irmão de leite.
(Santo Agostinho)[2]

RESUMO
Este ensaio apresenta um diálogo entre a visão psicanalítica do ciúme e como ele é expresso na cultura em vários tempos e lugares, com especial ênfase na música popular brasileira. Também discute a tênue fronteira que separa ciúme, inveja e avidez, apoiando-se em clássicos da psicanálise e do teatro, mostrando como esses fenômenos são cantados e representados pelo imaginário social.  Em sua análise, o autor mostra ainda como o ciúme é estruturante da psique humana e como está na origem do amor.
Palavras-chave: Ciúme; inveja; psicanálise; música popular brasileira 


Inicio este ensaio com a composição Gota d’água, por expressar o ciúme na sua forma mais extremada. De Chico Buarque de Hollanda e Paulo Pontes, é tema da versão brasileira da peça teatral Medeia, adaptada em 1975 por Oduvaldo Vianna Filho.[3]

Já lhe dei meu corpo, minha alegria, já estanquei meu sangue quando fervia;/Olha a voz que me resta, olha a veia que salta, olha a gota que falta, pro desfecho da festa, por favor,/Deixe em paz meu coração/Que ele é um pote até aqui de mágoa/E qualquer desatenção faça não/Pode ser a gota d’água/Pode ser a gota d’água/Pode ser a gota d’água.

Clássico do teatro grego, Medeia, de Eurípedes (413 a.C.), retrata a tragédia de ciúme da mulher abandonada por seu marido, Jasão, a quem Medeia muito havia ajudado em difíceis tarefas. Jasão tinha ido a Cólquida para obter o “velo de ouro”[4]. Ao chegar a Corinto ele, já casado, apaixona-se pela filha do rei Creonte e abandona Medeia, que, humilhada e desconsolada, elimina a rival e seu pai com seus poderes mágicos e, além disso, mata os próprios filhos. Não poderia haver vingança maior do que a de tirar do homem, objeto de seu ciúme, a sua descendência.
A peça aborda o ciúme como avassalador tormento de alma que, revelando-se sentimento atemporal, retrata, tanto na versão grega quanto na brasileira, a angústia de mulheres possuídas pelo extremo do ciúme, em sua forma trágica.
Mais do que uma alegoria, Medeia guarda uma atemporalidade, expressa nos vários casos de filicídio no mundo contemporâneo. Como exemplo, temos o caso de um homem londrino, P.W., que, ciente de que a ex-mulher estava namorando on-line, tem um acesso de ciúme e estrangula os dois filhos com o cabo do computador, tentando, em seguida, matar-se com uma overdose de medicamentos. Foi condenado a 28 anos de prisão. Aqui no Brasil podemos citar o exemplo do comentado caso N., em que a madrasta e o pai foram acusados do homicídio de uma criança. Não se trata de exemplos isolados nem raros. Filicídios, sejam pelo pai, seja pela mãe, causados por ciúmes, povoam as páginas policiais dos mais diferentes países. No caso do filicídio praticado por Medeia na tragédia grega, o ciúme atinge os limites do pensável.
Felizmente, porém, o ciúme pode se expressar nos mais variados matizes, do extremo mais horrendo da tragédia ao ciúme “como perfume do amor”, como cantou Vinicius de Moraes em uma de suas canções. Essa dimensão do ciúme faz evocar a origem da palavra. Ciúme deriva do latim zelumen, evoluindo para “zelo” em português, e, segundo Valdemiro Rodrigues (1953), ciúme inspira-se na palavra “cio” (dos animais), significando “zelo de amor”. Nesta música também aparece a ideia do ciúme como “um mal de raiz”:

Vire esta folha do livro e se esqueça de mim/Finja que o amor acabou e se esqueça de mim/Você não compreendeu que o ciúme é um mal de raiz/E que ter medo de amar não faz ninguém feliz/Agora vá sua vida como você quer/Porém não se surpreenda se uma outra mulher/Nascer de mim, como no deserto uma flor/E compreender que o ciúme é o perfume do amor (Medo de amar, Vinicius de Moraes).

No entanto, Paul-Laurent Assoun (2011)[5] chama a atenção para o fato de que a palavra alemã utilizada por Freud para designar o ciúme é Eifersucht, que designa literalmente “o medo apaixonado, excitado, de perder o amor de alguém ou de ter que dividi-lo” (Assoun, 2001, p. 9). E também “o temor de ter que renunciar a alguma coisa que poderia gerar benefícios ou direito, o que implica a defesa ciumenta” (ibidem, p. 9). O termo Eifersucht seria composto de duas partículas: eifer, que designa o zelo, e sucht, que se refere ao movimento passional com “conotação patológica, espécie de paixão mórbida” (Freud, 1897, citado por Assoun, 2011, p. 9).
Sucht é, assim, um vocábulo que designa “uma necessidade crescente doentia, a ponto de se empregar esse termo como sinônimo de adição” (Assoun, 2011, p. 9). Nessa concepção, sucht refere-se a uma necessidade que visa a se satisfazer intensamente, de maneira a buscar o objeto suscetível de provocar a satisfação dessa necessidade imperiosa, aumentando em força, de tal maneira que adquire uma dimensão invasora e patológica. O termo freudiano sucht marcaria a dimensão da apetência pulsional (wunsch, verlangen) polarizada sobre um objeto eletivo. Dessa forma, o termo se assemelharia semanticamente a rivalidade. Além disso, o adicto tem, de fato, uma relação possessiva e ciumenta com seu tóxico.
Dizer Eifersucht é, portanto, situar o ciúme no registro “aditivo – da dependência mórbida (sucht)” (Assoun, 2011, p. 10). O ciumento apresentaria uma “forma de zelo – intempestivo – em relação ao objeto de sua chama. Ele não o larga um milímetro sequer e organiza todos os seus atos e preocupações em torno dele, sob o modo conjugado de atração e de ressentimento” (ibidem, p. 10).
Em outra abordagem, Freud (1922, p. 271) apresenta o ciúme como a “chave da vida psíquica normal e patológica”, dizendo:

O ciúme é um daqueles estados emocionais, como o luto, que podem ser descritos como normais. Se alguém parece não possuí-lo, justifica-se a inferência de que ele experimentou severa repressão e, consequentemente, desempenha um papel ainda maior em sua vida mental inconsciente (Freud, 1922, p. 271).

 O ciúme faria parte da estrutura psíquica do sujeito, organizada a partir da experiência dos ciúmes infantis.
Na perspectiva freudiana, há o ciúme “normal” ou competitivo, o ciúme projetivo – que faz com que o sujeito atribua ao parceiro ou parceira seus próprios desejos de infidelidade – e o ciúme delirante articulado à paranoia (Freud, 1922).
O ciúme “normal” seria composto de pesar, dor e sofrimento, decorrentes de pensamentos que envolvem a perda do objeto amado e da ferida narcísica dos sentimentos hostis dirigidos contra “o rival bem-sucedido e de maior ou menor quantidade de autocrítica, que procura responsabilizar por sua perda o próprio ego do sujeito” (ibidem, p. 271).
Embora considerado “normal”, não se trata de um ciúme derivado de uma situação real e nem que esteja sob o controle completo do ego consciente. É um ciúme que se encontra profundamente enraizado no inconsciente. Por ser uma continuação das primeiras manifestações da vida emocional da criança, origina-se do complexo de Édipo do primeiro período sexual (Freud, 1922).
O “ciúme normal” estaria presente tanto na estruturação e descoberta do eu como na percepção do outro. Lacan (1981, p. 47) diz que “o eu constitui-se ao mesmo tempo que o outrem no drama do ciúme”. Para ele, “o sujeito é uma discordância que intervém na satisfação especular devido à tendência que esta sugere. Ela implica a introdução de um terceiro objeto, que, na confusão afetiva como na ambiguidade especular, substitui a concorrência de uma situação triangular”.
Em interessante comentário, Assoun (2011) ressalta também que Lacan devolve a contribuição freudiana para uma metapsicologia do ciúme, retomando ainda a questão da posição estruturante deste a partir de sua função especular, bem como de sua oscilação simbólica.
Já o ciúme projetivo é apresentado por Freud (1922, p. 272) como aquele que deriva, tanto nos homens quanto nas mulheres, “da própria infidelidade concreta na vida real ou de impulsos que sucumbiram à repressão”. O ciúme decorrente de tal projeção, embora possuindo “um caráter quase delirante”, é mais acessível ao trabalho analítico pela exposição das fantasias inconscientes da própria infidelidade do sujeito (ibidem, p. 293).
O terceiro tipo de ciúme, o delirante propriamente dito, embora também tenha sua origem em impulsos reprimidos no que tange à infidelidade, nele o objeto é do mesmo sexo do sujeito.
Podemos depreender da perspectiva psicanalítica que o amor começa pelo ciúme. O ciúme estaria ligado ao sentimento de amor, ao sentimento de insegurança, no qual explode com a necessidade que se tem do objeto amado. Em carta a Ludwig Binswanger, Freud (1920, citado por Assoun, 2011, p. 5) diz que “é o ciúme que parece poder nos dar a compreensão mais profunda da vida psíquica, tanto normal como patológica”.
Para o compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914–1974), comparado por Augusto de Campos a Nelson Rodrigues na coragem de desnudar os sentimentos dos brasileiros, nem “as pessoas de nervos de aço, sem sangue nas veias e sem coração” estão isentas do ciúme. Vejamos o que ele diz no samba “Nervos de aço”:

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?/Ter loucura por uma mulher/E depois encontrar este amor, meu senhor/Nos braços de um outro qualquer/Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?/E por ele quase morrer/E depois encontrá-lo em um braço/Que nem um pedaço do seu pode ser/Há pessoas de nervos de aço/Sem sangue nas veias e sem coração/Mas não sei se passando o que eu passo/Talvez não lhe venha qualquer reação/Eu não sei se o que trago no peito/É ciúme, despeito, amizade ou horror/Eu só sei é que quando a vejo/Me dá um desejo de morte ou de dor.

Para o saudoso radialista Luis Carlos Saroldi, Lupicínio Rodrigues teria conseguido formular como ninguém o que se poderia chamar, parodiando requintada terminologia sartriana, de sentimento de “cornitude”. E é exatamente esse ingrediente o responsável pelo sucesso estrondoso de Nervos de aço em 1947, revisitado trinta anos depois por Paulinho da Viola.
Mas a descrição do ciúme como “um desejo de morte ou de dor” vai reaparecer, sob outras palavras e melodia, no samba-canção que chegou ao sucesso em 1951 na voz de Linda Batista e que se tornou um modelo do gênero conhecido como música de fossa ou dor-de-cotovelo[6].

Eu gostei tanto, tanto, quando me contaram/Que te encontraram bebendo e chorando na mesa de um bar/E que quando os amigos do peito por mim perguntaram/Um soluço cortou sua voz não lhe deixou falar/Mas eu gostei tanto, tanto quando me contaram/Que tive mesmo de fazer esforço pra ninguém notar/O remorso talvez seja a causa do seu desespero/Você deve estar bem consciente do que praticou/Me fazer passar tanta vergonha com um companheiro/E a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou/Mas enquanto houver força em meu peito eu não quero mais nada/Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar/Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada/Sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar (Vingança, Lupicínio Rodrigues)

Arrigo Barnabé disse:

Não acredito em nada que não tenha angústia, isso talvez é o que mais me atrai nas canções de Lupicínio, e também a raiva, gosto muito de trabalhar com a raiva, a revolta. Nele tudo é verdadeiro, e raiva e angústia é meio difícil fingir. Por essa observação penetrante do ser humano nas situações limites da dor amorosa, por este humor que permeia as canções, um humor voltado para a ironia e o sarcasmo, por tudo isso estava atravessada a vontade de cantar Lupicínio (Barnabé, 2010/2011).

O ciúme é sentimento presente em crianças e adultos. Mas também entre irmãos, ou mesmo filhos que brigam pelo amor de um dos pais. Podemos considerar inaugural do ciúme e da inveja humanos a história bíblica de Caim e Abel, respectivamente, o primeiro e o segundo filho de Adão e Eva. Caim lavrava a terra enquanto Abel pastoreava ovelhas. Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor, e Abel também trouxe (a sua oferta) das suas ovelhas. O Senhor valorizou a oferta de Abel, o que não expressou em relação a Caim. Este, irado, sentindo-se desvalorizado e enciumado, matou o irmão.

E agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e errante serás na terra (Bíblia Sagrada, Gênesis 4.12,13 ).

Também podemos ver o ciúme retratado entre habitantes de duas cidades, como Petrolina, em Pernambuco, e Juazeiro, na Bahia. Na música O ciúme, Caetano Veloso aborda de forma poética este sentimento entre os habitantes de duas cidades separadas por uma ponte sobre o rio São Francisco – o “velho Chico” –, objeto do ciúme:

Dorme o sol à flor do Chico meio-dia/Tudo esbarra embriagado de seu lume/Dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia/Só vigia um ponto negro o meu ciúme/O ciúme lançou sua flecha preta/E se viu ferido justo na garganta/Quem nem alegre nem triste nem poeta/Entre Petrolina e Juazeiro canta/Velho Chico vens de Minas/De onde o oculto do mistério se escondeu/Sei que o levas todo em ti, não me ensinas/E eu sou só eu só eu só eu/Juazeiro, nem te lembras desta tarde/Petrolina, nem chegaste a perceber/Mas na voz que canta tudo ainda arde/Tudo é perda tudo quer buscar cadê/Tanta gente canta tanta gente cala/Tantas almas esticadas no curtume/Sobre toda estrada sobre toda sala/Paira monstruosa a sombra do ciúme.

Afinal, qual a origem do ciúme? O ciúme se origina nas relações precoces da infância humana, no instante fundamental da vida, em que dependemos do amor materno para sobreviver. É por isso que toda relação amorosa contém, na sua origem, um sentimento de posse e pretende ser única e exclusiva. Portanto, quanto melhor elaboramos ou simbolizamos a perda dessa dependência infantil, mais autônomos conseguimos ser e menos ciúme vamos sentir.
Segundo Lacan (1981, p. 48), “a observação experimental da criança e as investigações psicanalíticas, demonstrando a estrutura do ciúme infantil, trouxeram à luz do dia o seu papel na gênese da sociabilidade e, simultaneamente, do próprio conhecimento enquanto humano”. Essas pesquisas teriam revelado que o ciúme representa não só uma rivalidade vital, mas também uma identificação mental.
O ciúme infantil é evocado por Lacan (1981), quando cita Santo Agostinho: “Eu vi com os meus olhos e observei bem um pequeno tomado de ciúmes: ainda não falava e não podia, sem empalidecer, lançar o seu olhar para o espetáculo amargo do seu irmão de leite”.
A prematuração do ser humano ao nascer é importante para a compreensão do ciúme e da inveja. Diferente dos outros animais, o pequeno humano nasce prematuro, antes da completa mielinização do sistema nervoso, e, consequentemente, num extremo estado de dependência. Se observarmos outros animais, veremos que logo após o nascimento eles ficam de pé e buscam se alimentar de maneira ativa. Já o pequeno humano, devido ao seu estado de total dependência, vive uma experiência inicial na qual a construção do eu será calcada numa relação dual com a mãe como espelho propiciador de uma primeira identificação, em que o olhar da mãe vai funcionar como o lago para o pequeno Narciso. É por essa época que a criança começa a vivenciar a mãe como todo-poderosa, objeto de inveja, e vai ansiar para si esse poder percebido. É interessante notar que o termo inveja origina-se de videre – ver. Daí a origem das expressões “olho gordo”, “mau-olhado”, “olho de seca-pimenteira”, etc.
Elliot Jaques, citado por Melanie Klein (1968, p. 18)[7], chama a atenção para a raiz etimológica da palavra inveja: “do latim invidia, que deriva do verbo invideo – olhar alguém atravessado, considerá-lo com desconfiança ou rancor, jogar-lhe o mau-olhado, invejar ou guardar rancor de alguém”. Ele ilustra seu comentário utilizando a frase de Cícero: “provocar uma infelicidade por um mau-olhado”.
Embora universal, o ciúme está longe de ser visto como natural, pois, atravessando as relações afetivas, evoca os mais diversos sentimentos.
No artigo “Ciúme e traição: reflexões antropológicas”, a antropóloga Mirian Goldenberg apresenta interessantes dados de 1996 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, de homens e mulheres das camadas médias urbanas do Rio de Janeiro, que evidenciaram que, embora o ciúme e a infidelidade consistam em um dos principais problemas vividos nos relacionamentos amorosos, homens e mulheres apresentavam um discurso paradoxal, no qual, de um lado, há a exigência de privacidade, independência e autonomia e, de outro, de “sinceridade absoluta”, cumplicidade e complementaridade.
A autora indaga: como conciliar o não conciliável? Como fazer dialogar “sinceridade absoluta e cumplicidade com respeito à privacidade e à individualidade?” Como combinar o sentimento de posse contido num relacionamento amoroso e o desejo de preservação dos espaços individuais?
Há um paradoxo importante que se deve levar em consideração: enquanto a sexualidade humana é naturalmente poligâmica, a sociedade em que vivemos é monogâmica. Ou seja: a natureza é poligâmica e a nossa sociedade é monogâmica. Nossa cultura tenta resolver essa contradição. A fidelidade, então, não é natural, mas uma tomada de posição, derivando de uma escolha absolutamente racional.

De noite eu rondo a cidade/a te procurar hei de encontrar/No meio de olhares espio/em todos os bares você não está/Volto pra casa abatida/desencantada da vida/O sonho alegria me dá/Nele você está/Ah, se eu tivesse quem bem me quisesse/este alguém me diria/Desiste esta busca é inútil eu não desistia/Porém com perfeita paciência volto a te buscar hei de encontrar/Bebendo com outras mulheres/rolando dadinho jogando bilhar/E neste dia então/Vai dar na primeira edição/Cena de sangue num bar na avenida São João (Ronda, Paulo Vanzolini).

Uma das características humanas, diz Freud em Totem e tabu (1913), é desejar o que é proibido. Daí a proibição ser um elemento importante para fazer ressurgir o desejo. Esse gosto pelo proibido justifica a necessidade de criar um mandamento como o nono, que ordena “não desejar a mulher do próximo”. A existência desse mandamento revela que o desejo existe no humano e carece de interdição. Essas interdições se impõem na cultura, revelando-se muitas vezes adequadas, ao possibilitar o apaziguamento das pulsões. Na ausência desse apaziguamento, há o possível aparecimento de patologias e, neste sentido, diferentemente das religiões, a psicanálise propõe soluções singulares.
Não sendo possível desvincular o ciúme do adulto do ciúme da criança, ou seja, do ciúme compreendido como uma estrutura do psiquismo humano, haverá sempre uma raiz infantil no ciúme do adulto.
Uma música do repertório popular que nos evoca a imagem de um ciúme adulto com suas raízes infantis é Lábios que beijei, composição de J. Cascata e Leonel Azevedo, um dos maiores sucessos da brilhante carreira de Orlando Silva, gravada em 1937:

Lábios que beijei, mãos que afaguei/Numa noite de luar assim/O mar no céu bramia/E o vento a soluçar pedia/Que fosses sincera para mim/Nada tu ouviste/E logo partiste/Para os braços de um outro amor/Eu fiquei chorando/Minha mágoa cantando/Sou a estátua perenal da dor/Passo as noites soluçando com meu pinho/Carpindo a minha dor sozinho/Sem esperanças de vê-la jamais/Deus tem compaixão deste infeliz/Por que sofrer assim?/Compadecei-vos dos meus ais/Tua imagem permanece imaculada/Em minha retina cansada/De chorar por teu amor/Lábios que beijei/Mãos que afaguei/Volta dá lenitivo à minha dor.

Para compreendermos o ciúme no adulto, faz-se necessário compreendermos o ciúme na criança. O ciúme na criança nos remete, inevitavelmente, como já vimos, à sua dimensão estruturante. O ciúme ocorre na passagem da relação dual com a mãe para a ocupação do lugar de filho na relação triangular edípica – no momento marcado pelo medo de perder para outro o seu objeto de completude, de amor primário.
É no estabelecimento da introdução da função paterna que será definida a estrutura do ciúme, originada dos amores infantis. O ciúme nasce no momento denominado por Freud de complexo de Édipo, havendo, portanto, uma profunda ligação entre o ciúme do adulto e o ciúme da criança.
Assim, supõe-se que a vivência imaginária da criança de que foi traída pela mãe com o pai vai abalar a fantasia de onipotência infantil. Embora constitutivos do humano, inveja e ciúme nascem em momentos distintos, sendo a inveja anterior ao ciúme.
Como vimos, o estado de dependência do humano ao nascer o faz experienciar a mãe numa não diferença, em que ele é ao mesmo tempo um outro e si mesmo, num movimento de fusão-desfusão. Ela é vivenciada como aquela capaz de preencher-lhe as faltas e necessidades, levando-o ao sentimento de inveja. Por conseguinte, o bebê vai “perceber” a mãe como todo-poderosa, não diferenciada de si, estando ele ainda indiscriminado. Neste sentido, a inveja é uma experiência narcísica, própria a todos os bebês humanos, anterior à aquisição do sentimento de alteridade e, poderíamos dizer, contemporânea da primeira experiência de satisfação.
O ciúme, contemporâneo do complexo de Édipo, envolve uma relação com o outro. Já a inveja se refere à relação do indivíduo com uma só pessoa, remontando à mais primitiva relação exclusiva com a mãe. Ela decorre da relação de total dependência do bebê com a mãe, sendo esta a fonte de todo o amor. É nessa experiência precoce que ocorrem as marcas de formação tanto da inveja como do ciúme.
Klein (1968) estabelece importante distinção entre a inveja, o ciúme e a avidez. Para ela, a inveja seria o sentimento de cólera que invade um sujeito quando este teme que um outro possua alguma coisa de desejável e que dela goze. Dessa forma, “a impulsão invejosa tende a apoderar-se deste objeto ou a estragá-lo” (p. 17). Já o ciúme se fundaria sobre a inveja, mas, enquanto esta implica uma relação do sujeito com uma só pessoa e remonta a toda primeira relação exclusiva com a mãe, “o ciúme comporta uma relação com duas pessoas no mínimo e convergiria principalmente ao amor que o sujeito sente como lhe sendo devido e tomado por um rival” (p. 18). Por sua vez, a avidez seria a marca de “um desejo imperioso e insaciável, que vai ao mesmo tempo para além do que o sujeito tem necessidade e além do que o objeto pode ou quer lhe acordar” (idem).

Na dimensão inconsciente, a avidez busca essencialmente esvaziar, exaurir ou devorar o seio materno; ou seja, sua finalidade é uma introjeção destrutiva. A inveja não visa apenas à depredação do seio materno, ela tende, além disso, a introduzir na mãe, antes de tudo em seu seio, tudo o que é mau, e primeiramente excrementos maus e partes más do self, a fim de deteriorá-la e de destruí-la. O que, no sentido mais profundo, significa destruir sua criatividade (Klein, 1968, p. 18).

Klein (1968) conclui afirmando que “inveja e avidez tendem à destruição” – a primeira pela via da projeção e a segunda, de modo mais radical, pela introjeção. Já o ciúme seria vetorizado pela relação amorosa com o outro, ainda que mesclado com uma destrutividade de fundo invejoso.

A inveja dirigida ao seio materno e o aparecimento do ciúme estão diretamente ligados. O ciúme se funda sobre a rivalidade com o pai, suspeito e acusado de ter se apoderado do seio materno e da mãe. Essa rivalidade marca os estádios iniciais do complexo de Édipo positivo e negativo, que aparece normalmente ao mesmo tempo que a posição depressiva no decurso do segundo quarto do primeiro ano (Klein, 1968, p. 40).

Para Assoun (2011), a inveja ciumenta estaria aquém da cena originária, momento em que o bebê, ao ver a mãe se afastar, dá-se conta de sua dor. Essa “dor originária” sinalizaria a inscrição no sujeito de um objeto a perder. Trata-se, segundo Freud (citado por Assoun, 2011) da dor “diante do rosto estranho que vem usurpar o lugar do outro materno procurado pelos olhos” (p. 45). Freud apresenta a cena originária da separação como sendo o momento em que a criança vê a mãe se ir, constituindo o acontecimento mudo, pré-histórico do ciúme.
Portanto, mesmo antes da instauração do ciúme, a dor já estaria presente, marcando a existência de um ciúme ulterior na dialética do aparecimento/desaparecimento. A mãe sabe, então, gerir a situação, brincando de desaparecer, prometendo ao mesmo tempo seu reaparecimento. Mais tarde, porém, a criança fará hipóteses sobre as causas desse vaivém materno, atribuindo-o ao pai, explicando o ciúme que permanece infiltrado de dor, já em sua origem (Assoun, 2011).

O ciúme dói nos cotovelos/Na raiz dos cabelos/Gela a sola dos pés/Faz os músculos ficarem moles/E o estômago vão e sem fome/Dói da flor da pele ao pó do osso/Rói do cóccix até o pescoço/Acende uma luz branca em seu umbigo/Você ama o inimigo/Se torna inimigo do amor/O ciúme dói do leito à margem/Dói pra fora na paisagem/Arde ao sol do fim do dia/Corre pelas veias na ramagem/Atravessa a voz e a melodia (Dor de cotovelo, Caetano Veloso).

Se na música popular brasileira o ciúme foi cantado em diferentes matizes, com relação aos clássicos da literatura talvez a obra mais significativa seja Otelo, de Shakespeare, exemplar quando se trata do ciúme. Se fizermos um resumo da trama, encontraremos: Otelo é o general mouro do reino de Veneza que, por ciúmes e inveja, é vítima de uma armadilha do seu alferes Iago, que se vinga de Otelo porque este promoveu Cássio, jovem soldado florentino e grande intermediário nas relações entre Otelo e Desdêmona, em lugar dele, Iago.
Contrariando o pai, Brabâncio, rico senador de Veneza, Desdêmona se casa com Otelo. Mas a raiva do pai contra o casamento foi minimizada porque Otelo gozava da estima e da confiança do Estado, por ser leal, muito corajoso e ter atitudes nobres.
Iago, que odiava Otelo e Cássio, começou a semear a discórdia: hábil e profundo conhecedor da natureza humana e sempre fazendo reflexões sobre a humanidade, Iago sabia que, de todos os tormentos que afligem a alma, o ciúme é o mais intolerável e incontrolável.
Dando continuidade a seu plano, Iago insinuou a Otelo que Cássio e sua esposa poderiam estar tendo um caso. O plano foi tão bem traçado que Otelo começou a desconfiar de Desdêmona. Depois de várias armadilhas criadas por Iago para fazer Otelo acreditar na traição da esposa, Otelo, em total descontrole, asfixia Desdêmona em seu quarto. Ao saber que matara sua amada injustamente, desesperado apunhalou-se, caindo sobre o corpo da mulher. Otelo morre, beijando a quem tanto amava. Ao fim da tragédia, Cássio passa a ocupar o lugar de Otelo e Iago é entregue às autoridades para ser julgado.
Comentando passagens de Otelo, Klein (1968) ressalta que Shakespeare não parece sempre distinguir a inveja do ciúme. E ilustra sua observação com o seguinte verso: “Oh, senhor, cuidado com o ciúme. É o monstro de olhos verdes que desdenha da carne que o nutre” (ibidem, p. 20).
Klein (1968, p. 19) chama a atenção para o fato de o invejoso ser insaciável, sempre insatisfeito. “Monstro de olhos verdes”, traz a inveja enraizada em si, encontrando facilmente um objeto para o qual dirigi-la, revelando o estreito laço entre ciúme, inveja e avidez.
Ainda segundo Klein (1968), Otelo, dominado pelo ciúme, destrói o objeto que ama, o que caracterizaria “uma paixão ignóbil”.

O ciúme é uma paixão nobre ou ignóbil segundo o objeto. No primeiro caso, ele (o ciúme) se traduz por uma imolação aguçada pelo medo, no segundo, por uma avidez estimulada pelo temor. A inveja é sempre uma paixão vil, provocando as piores paixões na sua esteira (Crabb, citado por Klein, 1968, p. 19).

Segundo o English Synonym, de Crabb, citado por Klein (1968, p. 19), “o ciúme é o temor de perder o que se possui; a inveja é o sofrimento de ver outro possuir o que se deseja para si próprio. (...) O prazer do outro atormenta o invejoso, que só se compraz no infortúnio dos outros”.
Para Klein (1968), a atitude geral em relação ao ciumento difere da relativa ao invejoso. Ela lembra que em certos países, como a França, um crime passional cujo móvel é o ciúme beneficia-se de circunstâncias atenuantes, devido ao fato de a morte de um rival implicar o amor pela pessoa infiel. O que significa, diz ela, “que em nossa terminologia o amor pelo ‘bem’ existe e que o objeto amado não é danificado ou deteriorado como o seria pela inveja” (p. 19).
Já na literatura brasileira uma obra exemplar que retrata o ciúme é o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, no qual é narrada a famosa história da desconfiança que o personagem Bentinho tem de sua mulher, Capitu, achando que esta o traía com o seu melhor amigo, Escobar.
Dom Casmurro é uma obra cuja leitura oferece um leque de possibilidades interpretativas, encontrando no personagem Bento férteis elementos sobre a problemática do ciúme, Édipo e homossexualidade[8]. Seguindo o desejo da mãe, Bento foi criado para ser padre, ingressando no seminário. Essa atitude materna expressava o desejo de conservar o filho preso a ela. Após abandonar o seminário, Bento reencontra Capitu, namoradinha da infância. Sua trajetória de vida, até então alimentada pelo desejo materno, tornou-o um sujeito tristonho, frágil e infantilizado. Embora Capitu amasse Bentinho, percebia que para ele era difícil aceitá-la, uma vez que ela não correspondia à imagem da mãe.
Foi ainda no seminário que Bento conheceu Escobar, desenvolvendo por ele tanta admiração que poderia evocar uma relação amorosa parecendo sexualizada (não sublimada pela amizade), percebida por Capitu, que, em certo momento, indaga quem era aquela pessoa que merecia tanto afeto na forma de se despedir.
Bento acaba se casando com Capitu, tem um filho, mas não consegue assumir a função paterna, pois sua identificação com a figura masculina parecia pouco consistente. A impossibilidade de ocupar essa função o leva a uma atitude bizarra e extremada, a ponto de dizer: “Não é meu filho.” Porque prisioneiro do desejo materno, Bento viu-se na impossibilidade de assumir o lugar de “homem-marido e de homem-pai”, o que poderia explicar sua escolha homossexual inconsciente, responsável pelo ciúme (Freitas, 2004).
À medida que cresce o seu impulso homossexual por Escobar, Bento projeta cada vez mais tal impulso em Capitu, o que intensifica seu ciúme. Como bem lembra Freud (1922, p. 273), “o ciúme delirante é o sobrante de um homossexualismo que cumpriu seu curso e corretamente toma sua posição entre as formas clássicas de paranoia”. Como tentativa de defesa contra um forte impulso homossexual, ele pode, no homem, ser descrito pela fórmula: “Eu não o amo; é ela que o ama!” (Idem, p. 273).
Seria, então, o “ciúme paranoico” de Bento a expressão também de uma vivência invejosa? Neste caso, poderíamos pensar que tanto Shakespeare com Otelo quanto Machado de Assis com Bento oscilam entre a inveja e o ciúme? Essa oscilação poderia ser expressa na dúvida trazida por Bento quando indaga se foi realmente traído ou se foi seu “ciúme doentio que (...) o fez deturpar a realidade”. O ciúme doentio conteria a inveja?
Face ao afastamento do objeto amoroso, o ciumento vê-se perdido e sem referência, e tenta desesperadamente recuperá-lo no espelho de sua própria imagem que o outro representa. A expressão de um poeta sertanejo anônimo nos canta:

Tas vendo aquela cacimba naquela baixa acolá?/Te fica pro riba dela, espia que tu verá/A cara da tua cara/Lá debaixo a te espiá/Mas se acaso te arretira/Gurugutu, nem sina/Aquilo que fez contigo faz com outro que vier/Tas vendo aquela cacimba?/É o coração da muié [9].

Resumen
En este ensayo se presenta un diálogo entre la visión psicoanalítica de los celos y su expresión en la cultura en diferentes momentos y lugares, con especial énfasis en la música popular brasileña. También se ocupa  de las fronteras  que separan los celos, la envidia y la avaricia, apoyándose en los autores clásicos del  psicoanálisis y del teatro, mostrando cómo estos fenómenos son cantados y representados por el imaginario social. Los celos son así tratados en sus diferentes tonalidades, desde el más horrendo de la tragedia, hasta los celos como “el perfume del amor". También pone de relieve la contribución del psicoanálisis para una meta psicología de los celos, retomando la cuestión de la posición estructurante de los celos a partir de su función especular, así como su oscilación simbólica. En su análisis, el autor también muestra cómo los celos se originan en la temprana infancia de los humanos, en el  momento clave de la vida en que dependemos del amor materno para sobrevivir. Por último, la conclusión enfatiza que toda relación amorosa contiene, en su origen, un sentido de propiedad, pretendiendo ser único y exclusivo. La autonomía en relación con los celos dependerá de la elaboración o simbolización de esa vivencia infantil.

Palabras clave: Los celos; la envidia; el psicoanálisis; la música popular.
Abstract                                                           
This paper presents a dialogue between the psychoanalytic view of jealousy and its expression in culture at different times and places, with special emphasis on Brazilian popular music. It also addresses the boundary that separates jealousy, envy and greed, relying on classics of the psychoanalysis and of the theater, showing how the social imaginary sings and represents these phenomena. Jealousy is therefore discussed in its various shades, from the most horrendous extreme of the tragedy to the jealousy as “the perfume of love”. In addition, the paper highlights the contribution of psychoanalysis to a metapsychology of jealousy, resuming the issue of its structuring position from its mirroring function, as well as its symbolic oscillation. In his analysis, the author also shows how jealousy emerges in the early childhood relationships, in the fundamental moment of life, where we depend of maternal love for survival. Finally, the conclusion emphasizes that every love relationship contains in its origin a feeling of ownership and aims to be unique and exclusive. The autonomy in relation to jealousy will depend on the elaboration or symbolization of this experience during childhood.

Keywords : Jealousy; envy; psychoanalysis;popular music.




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[1] Psicanalista. Membro Titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro - Formação psicanalitica na Societé Psychanalytique de Paris.
[2]Video et expertus sum zelatem parvulum; nodum loquebatur et intuebatur pallidus amare aspectu conlacteum suum.” Saint Augustin. Confessions, livre I, section 7. Paris: Desclée de Brouwer, 1962, p. 293.
[3] A peça Gota d'água foi escrita em 1975 e publicada em livro homônimo no mesmo ano pela editora Civilização Brasileira. A ideia foi originalmente derivada de um trabalho de Oduvaldo Vianna Filho, que adaptara a peça grega clássica de Eurípedes sobre o mito de Medeia para a televisão, e à memória de quem foi dedicada. No prefácio do livro, os autores registram: “O fundamental é que a vida brasileira possa, novamente, ser devolvida, nos palcos, ao público brasileiro. Esta é a segunda preocupação de Gota d’água. Nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira.” A montagem original contou com coreografia de Luciano Luciani, cenografia e figurino de Walter Bacci, direção musical de Dori Caymmi e direção geral de Gianni Ratto
[4] Velo de ouro: pele de um carneiro divino ao qual se atribuíam poderes mágicos de cura.
[5] Todos os trechos referidos a Paul-Laurent Assoun e citados neste artigo são tradução livre do autor.
[6] Contam que foi Lupicínio Rodrigues o inventor do termo “dor-de-cotovelo”, que se refere à prática de quem crava os cotovelos em um balcão ou mesa de bar, pede uma bebida e chora pela perda da pessoa amada. Conta-se que, constantemente abandonado pelas mulheres, ele buscou na própria vida a inspiração para suas canções, em que a traição, o amor e o ciúme andavam sempre juntos.
[7] Todos os trechos referidos a Melanie Klein e citados neste artigo são tradução livre do autor.
[8] Um interessante trabalho sobre esta temática encontra-se em “Capitolina, a que ama no lugar do outro”, de Luiz Alberto Pinheiro Freitas. In Letras compartilhadas: ciúme, a leitura de um grande tema. Revista de (in) formação para agentes de leitura. Ano 4, 2004. Publicação adotada pela Petrobras.

[9] A cacimba, poema matuto-sertanejo, que aprendi na juventude, expressa bem a vivência do ciúme ligada ao narcisismo. Eu imaginava que o poema fosse de autoria de Catulo da Paixão Cearense ou de Zé da Luz, mas não consegui encontrar a referência exata da autoria.